mergulhar num estudo ‘etnofotográfico’ sobre aterros sanitários, tendo como campo permanente o acampamento de catadores de lixo.
A sinuosidade e a imprevisibilidade foram preponderantes nos caminhos que levaram ao desvelamento dessa imagem. No sentido coreográfico, o interesse volvia-se para o lixo. Não para estetizá-lo, mas para averiguar o campo de possibilidades que emana em torno do que já não significa nada. E perceber as ausências, os desaparecimentos e interferir no ciclo de duração das coisas. Revirar a lata de lixo para descobrir o que está por trás e atravessa a conformação com o desperdício, o desprezo e o descarte. Essa aptidão pelo desapercebido tornou-se um projeto de pesquisa e criação em dança, nomeado Intersecções entre os sentidos e a ausência, contemplado no último edital da extinta Bolsa Vital de Artes, em 2005.
Na ocasião optei por dividir a bolsa e convidar Aki Katai, Marta Cano, Nilo Martins e Viviane Domingues, integrantes do Núcleo de Pesquisa do Espaço Quasar (NpEQ). Aqui buscávamos outros formatos que extrapolassem a institucionalização das companhias de dança, para percorrer um roteiro de treze cidades e mergulhar num estudo “etnofotográfico” sobre aterros sanitários, tendo como campo permanente o acampamento de catadores de lixo, instalado na linha de ferro, em frente ao Parque de Exposições Agropecuárias de Goiânia.
O labirinto luminescente que desenovela o emaranhado sobre o corpo da bailarina na fotografia em questão resulta da digitalização de desenhos feitos à mão, com giz de cera, em blocos de papel sulfite, durante oficinas de experimentação artística dirigidas aos filhos dos catadores de lixo que, numa operação ousada e estratégica, deslocamos para o Parque da Criança, em parceria com a Fundação Pró-Cerrado. Ao observarmos mais de perto e nos depararmos com a inteligência cinética e sensível presente nos movimentos corporais dos filhos dos catadores, elaboramos que o estado permanente de risco, de quem ético e filosoficamente opta por estar à margem, aciona um processo de ebulição que equaciona altas doses de resistência, prontidão e adaptabilidade, dignas do nosso alumbramento. De maneira intuitivamente segura, sabíamos que havia muito o que aprender com aquelas crianças.
Os desenhos surgiram da simples tarefa mnemônica de revisitar e reinventar caminhos da memória. Arquivamos os desenhos e geramos arquivos de áudio com as narrativas que cada criança construía sobre os caminhos lembrados. Posterior à digitalização, de maneira bastante artesanal, eles foram transformados em frames, para serem projetados no chão como uma espécie de videocenografia, acidentalmente negativizados pelo videomaker Orlando Lemos. O que era cor se transformou em luz, o branco do papel, numa fluida e complexa máscara que filtrava o percurso e o atravessamento da luminosidade.
O espaço labiríntico interessava enquanto lugar de delírio e embriaguez. Era o labirinto que, no interior e exteriormente ao corpo, norteava o deslocamento e o movimento dançante. Na paisagem sonora mixada por Erica Bearlz, as narrativas dos caminhos de memória permeadas pela bateria da Estação Primeira de Mangueira. Nossa confusa, mas honesta homenagem aos que produzem invisibilidades sem medo ou despeito por habitá-las. Descoberto Incolor nasceu da urgência em transparecer a força que brota da capacidade de decomposição e da metamorfose dos lugares de reciclagem e de transformação.
Surgiu em 2003, desenvolvendo atividades de pesquisa e formação abertas à comunidade e coordenadas por Kleber Damaso e Letícia Ramos. Realizou trabalhos contemporâneos híbridos, tendo as artes visuais e o vídeo como lugar de criação e provocação. Encerra suas atividades em 2006.