Memórias, espaços e danças
Lembro-me de um dia em que estava de carona, parada no semáforo da Av. 85, em frente à Praça Cívica, e duas pessoas caminhavam pelas pequenas faixas amarelas do asfalto, que separavam as direções dos veículos acumulados por ali, e se confundiam com o tumulto da paisagem. Quase desviei o olhar quando se deitaram nas faixas. Foi quando reconheci o Kleber e a Letícia. Quis sair do carro e me deitar com eles! Quis sentir aquela liberdade também.
Recordo-me de ser um período de muita liberdade e insegurança que acompanhava este livre-arbítrio. Poderíamos fazer qualquer coisa, inclusive não fazer nada. Permeados por encontros, conversas e desvios, nossos corpos eram pura ação, o movimento era urgente. Impossível não fazer nada no corpo, do corpo, para o corpo, para outros corpos, em outros espaços.
A convivência com estes artistas modificou minha apreensão do espaço urbano completamente. As ruas eram coreografias inéditas, os ruídos indicavam direções possíveis, o caminhar, linha tênue para a invisibilidade, era a metáfora da constância. O silêncio era um fluxo interno relativo. Eu podia perceber movimento em qualquer lugar. Era inebriante. Uma euforia acompanhada do desejo de compartilhar, de fazer com que mais pessoas sentissem tal liberdade, se permitissem desamarrar do cotidiano, vivenciar outros instantes. Instantes mágicos que poderiam até enfeitiçar seus corpos para a dança.
Era um desejo constante de trocar experiências, de criar outras possibilidades de estar, de ocupar os espaços com nossos corpos e nos deixar ser ocupados por eles. Esta percepção e a necessidade de compartilhamento acabaram influenciando toda minha trajetória com o mover na cidade de Goiânia. Desde então percebo a cidade com meu corpo todo, num constante exercício de percepção, vislumbrando possíveis lugares para o exercício do compartilhar, para o aprendizado da dança. Possibilidades outras de afetos com o lugar que habitamos.
Acredito que coisas simples, vivenciadas cotidianamente, ganham dimensões profundas, quando compartilhadas, e podem diminuir nossas distâncias. E o contato com esses artistas do Grupo Desvio mudou minha forma de perceber o comportamento humano e a natureza, interferindo nas ferramentas que escolho para criações, experimentações cênicas, pesquisas e para, simplesmente ou complexamente, viver no movimento que a dança me possibilita. Por isso sou grata por me permitir estar, a partir do meu corpo, de minha dança.
“As ruas eram coreografias inéditas, os ruídos indicavam direções possíveis, o caminhar, linha tênue para a invisibilidade, era a metáfora da constância.“
Fundada em janeiro de 2003 por Letícia Ramos, Kleber Damaso e Henrique Rodovalho, a Desvio foi pensada como veículo de circulação de idéias e investigações através do corpo. Um espaço de encontro aberto para desenvolvimento de projetos de pesquisa e criação. Encerra suas atividades em 2006.